Na sequência da morte de José Saramago, um singelo texto de homenagem e lembrança da Professora Teresa Cristina Cerdeira da Silva, uma das mais distintas investigadoras da obra do Prémio Nobel de 1998:
Ir para longe, para o coração dos homens
O mundo ficou mais pobre hoje pela manhã. Morreu José Saramago. Não morreu o escritor, que esse nem morre e há de ser relido e reinventado pelo tempo afora. Morreu uma voz, que a partir de hoje só poderá ser ouvida pelo que já disse – e não será pouco nesse caso – mas já não intervirá nas cenas que o nosso mundo há de revelar. E é pena. É uma grande pena. Porque essa voz presente, ousada, tantas vezes polêmica, não necessariamente diplomática, tinha a beleza e a força do que nem sempre é previamente medido, mas que por isso mesmo abala, desentorpece, desinstala.
Dizer que foi um grande escritor seria tão banal que não mereceria espaço na economia deste texto. Mas talvez valesse intuir o que continuará a fazer dele – sem grande exagero premonitório – um escritor especialíssimo do nosso tempo. Quando as verdades vacilam, quando as crenças vêm sombreadas de desconfiança, quando o cansaço e o desencanto fazem da banalidade o objeto de desejo, quando parecem fracassar as últimas utopias da humanidade, gosto de pensar na galeria de personagens que ele criou, não porque a ficção seja um alento, mas porque de dentro dela esses personagens nos ajudam a encontrar a fenda no muro da história. Não estamos ali diante de um otimismo banalizado, mas a verdade é que, nesses romances que nos agarram pela inteligência e pelo coração, João Mau-Tempo erige-se como herói coletivo na luta de camponeses alentejanos; Blimunda e Baltasar garantem a permanência do sonho de criar; Raimundo Silva, modesto revisor de livros, põe em causa o conceito de história; e inventando sortilégios contra a morte, um certo senhor José reivindica a inscrição de todos os nomes nos “ficheiros” da história, porque afinal o dia só pode ser concebido ao lado da noite, ou de outro modo o presente ao lado do passado.
Eu conheci José Saramago há quase trinta anos, em dezembro de 1981. A observação poderia ser perfeitamente anódina e só não o é porque daquele encontro restou, entre tantas coisas, uma dedicatória inscrita no Levantado do chão que era já uma declaração de intenções desse humanista do nosso tempo. Dizia assim: “Para TC, que veio de longe e que, lendo este livro, para longe irá – para o coração dos homens, para o sofrimento deles, para a esperança que está perto – a futura e duradoura amizade do José Saramago”. Estava ali declarada, apesar do sofrimento, a esperança que ele sempre teve no coração dos homens.
Quisera hoje ter eu podido dizer à morte que tardasse mais um pouco a entrega da “carta violeta” que ele usou como metáfora nas Intermitências da morte . Teria sido um modo de pedir a ela que deixasse um pouco mais conosco um homem que amava os homens.
Teresa Cristina Cerdeira
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